RAID em NAS Doméstico: A Batalha Real entre ZFS (TrueNAS) e SHR (Synology)

      19 de dezembro de 2025 David Ross 10 min de leitura
      RAID em NAS Doméstico: A Batalha Real entre ZFS (TrueNAS) e SHR (Synology)

      Não escolha seu NAS pelo chassi, mas pelo sistema de arquivos. Entenda os trade-offs reais de integridade, expansão e custo entre ZFS e SHR antes de comprar os discos.

      Compartilhar:

      Quando analisamos armazenamento doméstico ou de pequenas empresas (SOHO), a discussão frequentemente degenera em tribalismo de marcas. De um lado, os puristas do ZFS que tratam a RAM como oxigênio; do outro, os pragmáticos do Synology que valorizam a conveniência do "plug-and-play".

      Como engenheiro de performance, não me importo com a cor do chassi. Eu me importo com o caminho do dado (datapath). Me importo com o que acontece quando um bit vira (bitrot) e com a latência introduzida por camadas de abstração. Vamos dissecar a arquitetura de armazenamento do ZFS (usado no TrueNAS) e do SHR (Synology Hybrid RAID), não com base em promessas de marketing, mas em como eles gerenciam blocos, paridade e integridade física.

      A escolha entre ZFS e SHR não é sobre interface gráfica; é uma escolha entre flexibilidade de expansão e garantia matemática de integridade.


      O que diferencia ZFS e SHR?

      ZFS (Zettabyte File System) é um sistema unificado que atua simultaneamente como gerenciador de volume e sistema de arquivos, garantindo integridade ponta-a-ponta através de checksums em cada bloco e exigindo planejamento rígido de hardware. SHR (Synology Hybrid RAID) é um sistema de gerenciamento automatizado baseado em Linux RAID (mdadm) e LVM (Logical Volume Manager), priorizando a flexibilidade para misturar discos de tamanhos diferentes ao custo de maior sobrecarga de CPU e menor visibilidade direta da saúde dos dados.


      A Ilusão do Hardware: Por que o Filesystem dita as regras

      Antigamente, confiávamos em controladoras RAID de hardware para gerenciar a redundância. Elas eram caixas pretas caras com baterias de cache. Hoje, em um NAS doméstico, a CPU é o controlador. Isso significa que a eficiência do seu código define a performance do seu array.

      O erro fundamental de muitos entusiastas é tratar o disco rígido como um cofre confiável. Discos mentem. Eles reportam gravações que ainda estão no cache volátil. Eles falham em setores silenciosamente.

      • No mundo ZFS: O sistema não confia no disco. Ele assume que o hardware é hostil e verifica tudo.

      • No mundo SHR: O sistema confia na camada de abstração do Linux (mdadm) para apresentar um "disco virtual" limpo para o sistema de arquivos (geralmente Btrfs ou ext4).

      Essa diferença arquitetural define tudo o que vem a seguir.

      Anatomia do Synology SHR: O truque do LVM e fatiamento de discos

      O Synology Hybrid RAID (SHR) é frequentemente chamado de "mágico" porque permite misturar um disco de 4TB com um de 8TB e, eventualmente, utilizar todo o espaço. Mas em engenharia, mágica é apenas complexidade oculta.

      O SHR não é um novo tipo de RAID. Ele é um script de automação inteligente que opera sobre duas tecnologias Linux robustas: mdadm (software RAID) e LVM (Logical Volume Manager).

      Como o SHR gerencia a capacidade mista

      Imagine que você tem dois discos de 4TB e dois discos de 8TB.

      1. O SHR cria um array RAID 5 usando 4TB de cada um dos quatro discos.

      2. Sobram 4TB não utilizados nos dois discos maiores.

      3. O SHR cria outro array RAID 1 (espelhamento) usando apenas essas sobras.

      4. O LVM entra em cena e "cola" esses dois arrays distintos em um único volume lógico linear.

      O 'Tetris' do Armazenamento: Como o SHR usa LVM para fatiar discos físicos e criar múltiplos arrays RAID invisíveis ao usuário. Figura: O 'Tetris' do Armazenamento: Como o SHR usa LVM para fatiar discos físicos e criar múltiplos arrays RAID invisíveis ao usuário.

      O Custo da Abstração: Essa flexibilidade tem um preço em latência e IOPS. Quando você grava um arquivo grande, o LVM pode estar espalhando blocos entre o RAID 5 (mais lento em escrita devido ao cálculo de paridade) e o RAID 1. As cabeças de leitura/escrita dos discos maiores precisam trabalhar em dobro, buscando dados em diferentes "fatias" lógicas do mesmo prato físico. Em cargas de trabalho sequenciais (filmes), isso é imperceptível. Em cargas aleatórias (banco de dados, VMs, Docker), o wait time de I/O aumenta.

      A Fortaleza ZFS: VDEVs, Copy-on-Write e a rigidez necessária

      O ZFS rejeita a ideia de camadas. Ele quer controle total. Não existe "RAID" abaixo dele e "Filesystem" acima. É tudo uma coisa só.

      O bloco de construção do ZFS é o VDEV (Virtual Device). Um VDEV pode ser um espelho, ou um RAIDZ (equivalente ao RAID 5/6). O pool é formado por um ou mais VDEVs.

      O Mecanismo Copy-on-Write (CoW)

      Em sistemas tradicionais (como ext4 no Synology), se você edita um arquivo, o sistema sobrescreve os dados antigos no local. Se a energia cair durante essa sobrescrita, você tem corrupção.

      O ZFS usa Copy-on-Write. Ele nunca sobrescreve dados ativos.

      1. Novos dados são escritos em um novo bloco livre.

      2. O checksum é calculado.

      3. Só então o ponteiro de metadados é atualizado para apontar para o novo bloco.

      Isso garante que o estado do sistema de arquivos seja sempre consistente, sem necessidade de fsck (checkdisk) após queda de energia.

      A Paranóia Necessária: O ciclo de leitura do ZFS não confia no disco. Ele confia na matemática (checksum) para validar cada bloco lido. Figura: A Paranóia Necessária: O ciclo de leitura do ZFS não confia no disco. Ele confia na matemática (checksum) para validar cada bloco lido.

      A "rigidez" do ZFS vem do fato de que, historicamente, você não podia adicionar um único disco a um VDEV RAIDZ existente. Você tinha que adicionar um novo VDEV inteiro. Isso torna o planejamento de capacidade no TrueNAS muito mais crítico e caro inicialmente do que no Synology.

      Proteção contra Bitrot: Onde o ZFS realmente supera o Btrfs sobre mdadm

      Aqui reside a maior diferença técnica para quem valoriza a longevidade dos dados (fotos de família, documentos fiscais).

      O cenário Synology (Btrfs sobre mdadm): A Synology usa Btrfs, que possui checksums. Se o Btrfs ler um arquivo e o checksum falhar, ele sabe que o arquivo está corrompido. Ótimo. Mas o Btrfs no Synology roda em cima do mdadm. O Btrfs muitas vezes não tem controle direto sobre qual disco físico tem a cópia boa. Ele precisa pedir ao mdadm. Embora a Synology tenha integrado correções, é uma colcha de retalhos de camadas. Frequentemente, o mdadm diz "o disco está online e feliz", enquanto o Btrfs diz "o dado está podre".

      O cenário ZFS (Autocura Nativa): No ZFS, o checksum não é apenas do arquivo, mas de toda a árvore de dados (Merkle Tree). O ponteiro pai tem o checksum do bloco filho.

      1. Você pede um arquivo.

      2. O ZFS lê o bloco do Disco A.

      3. Calcula o checksum. Não bateu?

      4. O ZFS sabe instantaneamente que o Disco A mentiu.

      5. Ele lê o bloco de paridade ou espelho do Disco B.

      6. Verifica o checksum. Bateu?

      7. Ele entrega o dado correto para você e repara o bloco errado no Disco A automaticamente.

      Tudo isso acontece em microssegundos, transparente para a aplicação.

      O Dilema da Expansão: Adicionar um disco (SHR) vs RAIDZ Expansion

      Para o usuário doméstico, o modelo de expansão é o fator decisivo de compra.

      A facilidade do SHR

      O SHR permite o crescimento orgânico. Começou com 2 discos? Adicione o 3º. O sistema vai passar dias "reconstruindo" e expandindo o volume (processo intensivo de I/O), mas ao final, você tem mais espaço. É a vitória da conveniência.

      A evolução do ZFS (RAIDZ Expansion)

      Durante anos, o ZFS exigia que você comprasse discos em lotes. Se você tinha um RAIDZ2 de 6 discos, para expandir, precisava comprar outros 6 discos para criar um novo VDEV.

      Recentemente, o recurso RAIDZ Expansion chegou ao OpenZFS (e ao TrueNAS Scale). Ele permite adicionar um disco a um VDEV existente. O Alerta do Engenheiro: Não é mágica. O ZFS não reescreve os dados antigos para redistribuir a paridade perfeitamente (como o SHR faz). Os dados antigos mantêm a proporção de paridade antiga; apenas os novos dados usam a nova largura. Isso significa que você não ganha performance imediata e o espaço ganho tem uma pequena ineficiência (overhead) até que os dados sejam reescritos. É funcional, mas tecnicamente "menos limpo" que o método do SHR.

      Custo Total de Propriedade (TCO): O preço da flexibilidade vs RAM

      Não olhe apenas o preço dos discos. Olhe o conjunto.

      Custo de Memória (RAM)

      • ZFS: É faminto por RAM. A regra de ouro (embora flexível) é 1GB de RAM para cada 1TB de armazenamento para performance ótima, devido ao ARC (Adaptive Replacement Cache). O ZFS usa RAM como cache de leitura agressivo. Sem RAM suficiente, a performance de leitura despenca, pois ele precisa buscar metadados nos discos rotacionais.

      • SHR/Synology: Roda bem com 4GB ou 8GB de RAM mesmo em arrays grandes. O Linux gerencia o cache de página de forma mais conservadora.

      Custo de Hardware vs Software

      • Synology: Você paga um prêmio altíssimo pelo hardware (frequentemente CPUs Celeron ou Ryzen antigos) para ter o software (DSM). O TCO é alto no hardware, baixo na manutenção cognitiva.

      • TrueNAS (ZFS): O software é grátis. Você pode usar hardware commodity ou enterprise usado. O custo está no tempo de configuração e na necessidade de hardware específico (ECC RAM é altamente recomendada para ZFS para evitar que erros de memória corrompam o pool, embora não seja obrigatória para uso doméstico).

      Comparativo Técnico Direto

      Característica Synology SHR (Btrfs/mdadm) TrueNAS (ZFS) Vencedor Técnico
      Expansão Adição de disco único com rebalanceamento total. Adição de VDEV ou RAIDZ Expansion (com caveats). SHR (Flexibilidade)
      Integridade de Dados Checksum de arquivo (Btrfs) sobre camada burra (mdadm). Checksum hierárquico e autocura (Self-healing) nativa. ZFS (Segurança)
      Performance (Throughput) Limitada pela CPU em arrays mistos (LVM overhead). Limitada apenas pela física dos discos e tamanho do ARC. ZFS (Velocidade)
      Requisito de RAM Baixo (2GB-8GB é funcional). Alto (8GB mínimo, 16GB+ recomendado). SHR (Eficiência)
      Portabilidade Proprietário (difícil montar discos SHR fora de um Synology). Universal (Importe o pool em qualquer Linux/BSD com ZFS). ZFS (Liberdade)

      Veredito Técnico: Quando a conveniência vence a pureza técnica

      Como engenheiro, minha preferência natural é pelo ZFS. A elegância de como ele trata a integridade dos dados é inigualável. Se você vai armazenar dados que não podem ser perdidos sob nenhuma hipótese (arquivos de trabalho, produção de vídeo, backups únicos), o ZFS no TrueNAS é a única escolha profissional. A curva de aprendizado e o requisito de RAM são o seguro que você paga contra o bitrot.

      No entanto, o Synology SHR é uma obra-prima de engenharia de usabilidade. Para um media server (Plex/Jellyfin), backup de PCs domésticos e armazenamento geral onde a densidade e a facilidade de expansão superam a necessidade de performance extrema de I/O, o SHR vence. O "truque" do LVM funciona bem o suficiente para 95% dos lares.

      A regra final:

      • Se você tem orçamento para comprar todos os discos de uma vez e quer performance máxima: Vá de ZFS.

      • Se você vai comprar um disco por ano na Black Friday e quer silêncio e baixo consumo: Vá de SHR.

      Apenas lembre-se: RAID não é backup. Seja ZFS ou SHR, se a casa pegar fogo ou um raio queimar a controladora, seus dados se vão. Mantenha sempre uma cópia off-site.


      Referências & Leitura Complementar

      1. OpenZFS Documentation: "ZFS Data Integrity - The Merkle Tree Architecture".

      2. Synology Inc. Whitepaper: "Synology Hybrid RAID (SHR) Technology Guide - Based on LVM and mdadm implementation".

      3. Bonwick, J. & Moore, B. (Sun Microsystems): "ZFS: The Last Word in File Systems" (O paper original que definiu a arquitetura de 128-bits).

      4. RFC 3720: iSCSI (Internet Small Computer Systems Interface) - Para entender o transporte de blocos sobre rede em ambos os sistemas.

      #TrueNAS Scale ZFS #Synology Hybrid RAID #SHR vs ZFS #RAID Calculator #Home Lab Storage #Data Integrity
      David Ross

      David Ross

      Linux Sysadmin Veterano

      Vive no terminal. Mantenedor de diversos módulos kernel de storage. Acredita que GUI é bloatware.